sábado, 13 de novembro de 2010

ENEM


            “O ENEM foi um sucesso!”, afirmou o presidente Lula. Os candidatos que fizeram as provas amarelas que o digam.
            No final de semana passado, dias 6 e 7 de novembro foi aplicada a prova mais concorrida de acesso ao ensino superior. Na minha sala de aplicação, não creio que estudantes tenham tido problemas, afinal, a primeira coisa que a fiscal alertou ao distribuir o cartão de respostas foi sobre a ‘troca’ do que estava escrito acima do local para marcação de respostas: onde estava escrito “Ciências Naturais e suas Tecnologias” era para estar escrito “Ciências Humanas e suas Tecnologias”, e vice-versa, de acordo com a ordem das duas áreas no caderno de questões. Confesso que não fosse o aviso da fiscal, eu, como muitos outros que agora reclamam de um erro desses, não teria lido tais “títulos” e teria prosseguido marcando as respostas apenas de acordo com os números das questões. No primeiro dia, recebi a prova amarela, sem nenhum erro de impressão, com 90 questões, nenhuma repetida, nenhuma em branco nem com pedaços que pareciam faltar. Além disso, não percebi ninguém reclamando de tais erros. Não é por isso que eu ache que não tenha havido problemas no ENEM. Além de problemas como esses que não aconteceram na minha prova, notícias falam também de um possível vazamento do tema da redação.
            A respeito das críticas ao ENEM, tem dois fatores que considero importantes. Um deles é que existem forças políticas contrárias ao ENEM, obviamente que dentro até do INEP. O próprio jornalista Bóris Casoy falou sobre isso no Jornal da Noite na semana passada. Creio que um dos motivos dessa opinião contrária ao ENEM é o fato de que, não fossem o vazamento de temas de redação e provas, e os erros de impressão nas mesmas, o ENEM seria realmente um sucesso, um dos muitos sucessos do governo Lula. O INEP possui até um sistema para definir a dificuldade das questões e saber por meio delas se o aluno acertou muitas questões por chute. Uma prova que consegue [quase] tirar o fator sorte ao entrar na faculdade tem que ser considerada um avanço muito grande, na educação e na diminuição da desigualdade social. Significaria investir em faculdades públicas para alunos realmente interessados nas questões relevantes da sociedade, e não aqueles que tinham dinheiro para pagar uma ótima escola particular e ainda um cursinho pré-vestibular.
            Outro ponto a ser levantado é a dificuldade da prova e a relevância da mesma no futuro profissional. Dentro do meu entendimento de como o Brasil funciona, o ensino médio é não apenas uma preparação para o ensino superior, mas essencialmente uma preparação para a vida. Vi em redes sociais virtuais muitas pessoas reclamando a importância do conhecimento sobre feijão tropeiro na vida. Isso é cultura brasileira, porra! É revoltante como as pessoas reclamam de algo que faz SIM diferença. Um ponto importante dessa discussão é o conhecimento da cultura brasileira, num país cujos jovens desvalorizam imensamente a música brasileira, de ontem e de hoje, para idolatrar bandas estrangeiras. Para mim, isto é uma problemática do imperialismo: não faz mal ter cultura, afinal o ser humano e seus gostos são determinados por ela, o ruim é quando um grupo se utiliza desses processos psicoculturais para manipulação e seu autobeneficiamento acima dos direitos de escolha dos outros.
            A questão sobre o feijão tropeiro era completamente interpretativa, apenas lendo o texto antecedente e tendo uma capacidade mínima de interpretação se podia responder corretamente a questão. Além disso, dentre as pessoas que não gostaram do estilo da prova estão algumas que assistiram minha palestra em 2008, que envolveu esse assunto e garantia um acerto nessa questão. Aliás, havia pelo menos mais uma questão que quem assistiu minha palestra podia acertar de cara. Mas tenho plena certeza de que alguns erraram, por pura falta de interesse. A prova do ENEM mede um conhecimento de mundo, de meio ambiente, a capacidade de interpretação, de calcular coisas relevantes no futuro e de se expressar defendendo embasadamente um ponto de vista. O ENEM é mais interdisciplinar que os vestibulares tradicionais, não foca naquilo que o estudante vai rever na faculdade. O fato é que os estudantes de alto nível econômico que passam no vestibular vão reclamar de estar re-estudando algo que já aprenderam no ensino médio, e já lhes foi cobrado até no vestibular. Afinal de contas, sempre reclamam do que não é fácil, mas não tentam ver os problemas realmente dificultosos dos outros com os mesmos olhos de piedade, afinal, para eles esta piedade só funciona quando é para eles mesmos.
            Graças ao fato do ENEM não cobrar mais aquilo a que as pessoas podem adquirir apenas em um cursinho, um colégio particular ou um dos raros colégios públicos de qualidade elevada, isso as faz reclamar de uma situação que deixa as pessoas mais iguais. Faz sentido, já que está dentro da cultura da maioria lutar apenas pelos interesses individuais. Não cabe a mim julgar o egoísmo: ele é ensinado pelos nossos pais quando eles vêm alguma notícia ruim na televisão e falam “O que eu posso fazer?”, e nos mostram que devemos lutar pela nossa própria qualidade de vida, e assim sendo, cada um por si e tentando puxar o Estado a seu próprio favor. Não é a toa que jovens esbravejavam nas redes sociais virtuais lutando contra as forças políticas esquerdistas da situação. Estão começando a viver em uma sociedade onde não podem mais se dar ao luxo de ficar na sala de jantar enquanto comem uma gostosa broa de milho feita pela preta que serve a casa, e têm de ir a favor de seus interesses. O problema é que este é o primeiro governo no Brasil que não lutou tanto pelas elites, mesmo que falte muito a fazer pelas pessoas desfavorecidas economicamente.
            Há um costume em dizer que o importante é investir em ensino superior para avançar na tecnologia, quando há falhas no ensino básico! Não nego que os engenheiros e médicos pesquisadores me permitiram uma grande qualidade de vida, junto com as oportunidades e o modo como meus pais foram criados. Há quem ache errado o Estado investir em “oportunidades” para quem não se esforça tanto, mas não enxergam que tais pessoas se esforçariam tanto quanto qualquer um se tivessem os mesmos incentivos. Porque um pobre é obrigado a trabalhar o dia inteiro e só ter acesso a um curso de licenciatura, se um filho de ricos pode ir num carrão pra faculdade de medicina, bem dizer, sem nunca ter feito nada pelas próprias pernas durante a vida inteira?
            Como o ENEM coloca essas pessoas mais humildes com quase as mesmas chances de passar em uma faculdade que os ricos, aqueles que têm um nível econômico mais alto passam a desvalorizar e tentar derrubar um processo no qual não têm mais vantagens que os outros. Além de tudo satirizam uma prova na qual nem sabem se foram bem, mas tem que manter uma imagem entre os amigos.
            E não é apenas o ENEM. Hoje existe ProUni, FiEs e outros financiamentos estudantis... enfim, outras políticas públicas que tornam mais aberto o mercado de trabalho a quem ontem tinha que aceitar de boca fechada consumir bem menos que os outros. Acho que o problema a partir de agora é que talvez não demore e aconteça como acontece no mercado de trabalho e alguém ache uma super solução (que renda-lhe dinheiro) e ajude mais os ricos a passar até no ENEM, o que seria entender a sociedade a nossa volta sem reconhecer que seus problemas necessitam de solução, simplesmente ignorar as ciências humanas. O importante é que pelo menos o primeiro passo numa caminhada para a redemocratização do acesso ao ensino superior e à melhor qualidade de vida para todos já foi dado.

Guilherme Fernando Schnekenberg

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